OPINIÃO: O Estádio e o Adepto | Relvado

OPINIÃO: O Estádio e o Adepto

Entre o conforto do ecrã plasma e um estádio ao rubro existe um mundo de diferenças, enaltece Pedro
 

Os jogadores e os quilos a mais no regresso das férias. A novela do treinador que fica ou que vai. O presidente sereno que tudo promete. A bola que devia ter entrado e não entrou. E por fim, o estádio.

Motivo de orgulho para tantos, é raro pararmos para pensar no seu significado. Dado como adquirido, este anfitrião de ocasião, aproveita também a pausa entre campeonatos para se renovar. Vê plantadas as sementes do seu novo relvado, observa com rigor e orgulho o brilho das suas novas marcações, assiste com prazer ao retocar das bancadas e ao ultimar dos preparativos para mais uma época. Na imagem quase anti-natura de um estádio vazio, sobressai uma força serena. Um velho amigo em quem se pode confiar.

Surge numa multiplicidade de formatos, partindo de uma premissa inglória de tentar agradar a todos. De construção simples ou esculpido das entranhas de uma pedreira, com capacidade para grandes enchentes ou suficientemente acolhedor para uma plateia de curiosos, o estádio tem um magnetismo próprio difícil de explicar. Local de culto sagrado, abre as portas em dia de jogo, acolhendo milhares de peregrinos que para lá se dirigem em massa. Sedentos de vitórias, os adeptos entregam-se  ao ambiente colorido e ruidoso das bancadas. Durante cerca de duas horas, para o bem ou para o mal, é espetáculo garantido.

É curioso observar o comportamento dos adeptos. Para além do que se passa dentro das quatro linhas, existe uma trama subjacente a toda a bancada. Por vezes aquilo que parece, não o é. Não se surpreendam se virem uma senhora de idade irromper num chorrilho de palavrões. É também comum ver um homem de aspeto polido e ares de superior riqueza, fazer um gesto obscenamente animalesco. Pais que perdem as estribeiras a serem chamados à razão pelos filhos que os observam envergonhados. Tudo isto é normal e fácil de observar. Quem vai ao futebol de boa fé, reage com salutar indiferença a todo o tipo de manifestações caricatas. Faz parte.

No regresso a uma segunda casa que tão bem se conhece, é engraçado rever caras conhecidas. As pessoas escolhem uma porção do estádio que tornam sua. Defendem a sua escolha com unhas e dentes. Habituam-se a um ângulo de visão do jogo e é raro abdicarem dele. Seja por um investimento generoso num lugar cativo ou por aparições esporádicas no último anel, vão-se formando famílias que vibram em conjunto com as nuances da partida. Explodem no momento do golo. Murcham quando a equipa visitante comete a ousadia de marcar. Achincalham a progenitora do árbitro. Reclamam do estado do relvado e das estratégias de rega pré-jogo. Anos de uma convivência cúmplice, levam a que baste uma breve troca de olhares para saber o que um vizinho de bancada está a pensar.

Histórias que merecem ser contadas

Nos anos que levo de idas ao estádio, quero partilhar convosco duas histórias que ilustram bem a relação intensa que o comum dos adeptos tem com o seu recinto. A primeira envolve uma senhora de avançada idade com quem tive o privilégio de partilhar um cativo durante algumas épocas. Calma e composta antes dos jogos, entretinha-se a trautear os hinos da praxe enquanto fazia o seu ponto cruz. Mal sabia eu o que me esperava. Assim que começava a partida, surgiam os primeiros indícios da sua outra faceta. Dependendo do lado para o qual a equipa atacava, a senhora ia-se inclinando com o desenrolar da jogada. Primeiro com o braço a apontar em direção à baliza e depois rodando o corpo, tombando para o lado e para o colo de quem se sentava ao seu lado. Assim que a jogada esmorecia voltava a sentar-se na vertical. E assim sucessivamente durante os noventa minutos. Tanta inclinação resultava por vezes em quedas mais ou menos aparatosas. Sempre de sobreaviso, ajudávamos a senhora a voltar ao seu assento. Esta desfazia-se em desculpas e prosseguia a dança sem que nada se tivesse passado.

A segunda envolve um senhor de farto bigode e de pavio curto. Este senhor ficava sentado ao lado de uma divisória entre os sectores. Nessa vedação existia um portão que os adeptos mais afoitos faziam questão de atravessar. Forçavam a entrada e cruzavam para o outro lado com a aparente conivência dos elementos de segurança. O senhor queixava-se de estar sempre com pessoas a passarem à sua frente e a incomodarem-no. Vociferava durante o jogo e no intervalo as acusações subiam de tom com o fluxo migratório nas bancadas. Se não fosse a pronta intervenção dos stewards a apaziguar os ânimos, tinha chegado a vias de facto por inúmeras vezes. Lembro-me da raiva nos seus olhos. Era angustiante.  Parecia uma bomba-relógio prestes a explodir. Decidiu então que ia resolver a questão, desse por onde desse. Contou-me, mais tarde, um amigo meu qual a solução encontrada: um cadeado trazido de casa e colocado no portão em pleno estádio. Assim que o cadeado se fechou, para alivio de todos, virou-se triunfante para a restante bancada e recebeu uma merecida ronda de aplausos. O tormento chegara ao fim.

Números recentes indicam que cada vez menos pessoas se dirigem aos estádios. O excessivo preço dos bilhetes em época de contenção financeira é difícil de perceber. A escravidão dos clubes em relação às transmissões televisivas também é parte do problema. Agendam-se jogos para o primetime televisivo descurando o quality time dos adeptos. É pena que assim seja. Entre o conforto do ecrã plasma e um estádio ao rubro existe um mundo de diferenças. 

Num espaço que procura esbater as diferenças sociais, em que coabitam ricos e pobres, novos e velhos, entusiastas ou meros curiosos, o difícil é regressar a casa sem uma boa história para contar.

(Pedro Mota é um adepto atento e especialista no fenómeno futebolístico)

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Comentários [3]

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violência e desorganização

as pessoas também não vão mais aos estádios devido a crescente violência que existe no futebol!

a violência também surge devido a falta de organização. não se compreende como é que um adepto chega 1h30min antes de um jogo começar e só entra no estádio meia hora depois do jogo iniciar, tudo porque a porta de entrada dos adeptos comuns era a mesma das claques e por isso esteve fechada... como é possível 25% de um estádio ficar à espera de uns quantos??

Soberbo artigo o que me fez relembrar..., fosse no velhinho José

de Alvalade, ou de Portimão a Chaves, conheci como pertencente à Juventude Leonina a maioria dos estádios deste País, e mesmo mais tarde sempre que podia desloquei-me a ver o MAIOR o SPORTING CLUBE de PORTUGAL mesmo indo para fora deste nosso cantinho à beira-mar plantado.

Vou-lhe contar, vi centenas de jogos que me marcaram, cada um com uma história peculiar, mas um mais recente que ainda hoje recordo sem conter uma boa risada, foi no Salgueiros(al), clube presidido à altura por um cara de bruxo, um cabrão da pior espécie o José António Linhares, em que fomos lá vencer e ganhar o Campeonato depois do périplo de anos e anos sem ganhar o Campeonato Nacional.

Aquela maré verde, qual irmandade de LEÕES, o lacrimejar nos golos e no final aquele grito de que somos CAMPEÕES, coisa que nunca esquecerei qual babilónia de gentes de raças e linguajares diferentes unidos por um único propósito ver o MAIOR o nosso SPORTING CLUBE de PORTUGAL, que coisa LINDA!!!

E cá fora, porque não o deixaram entrar com a imagem da Nossa Senhora de Fátima ou talvez porque não tivesse possibilidades de pagar a exorbitãncia do preço do bilhete um balúrdio em "contos de réis", pedido por esse escroque de Alinhavares..., já desaparecido do Mundo dos vivos, estava um rapazeco negro que nunca mais esquecerei, tal a felicidade que irradiava, são estas pequenas coisas que nos marcam para todo o sempre.

Sempre que leio artigos deste

Sempre que leio artigos deste senhor, que não faço ideia quem seja, é inevitável a comparação com os artigos venenosos do caixinhas de óculos.