Crónica: Carta de um benfiquista consciente

Tivemos direcções com declarações bombásticas, eufóricas, eleitoralistas ("melhor clube do mundo" e afins); lavar de roupa suja entre dirigentes de clubes rivais que causavam depois amargos de boca; jogadores sem nível e estofo psicológico para o Benfica; muito dinheiro mal gasto ou gasto em bolsos mal explicados (empresários, negociatas, favores, lavagens de dinheiro, etc); o clássico cemitério de treinadores sem apoio da direcção e/ou sem apoio de uma estrutura directiva e de formação (Fernando Santos, Trapatoni, Camacho...); isto tudo com reflexos óbvios nas equipas e nos jogadores.A questão é que isto influenciou os próprios adeptos, tornou-os voláteis, instáveis e impediu benfiquistas conscientes de terem palavra e intervenção no Benfica, principalmente na sua direcção.Incluo-me nos adeptos benfiquistas conscientes, no sentido em que também ouvi muitas bocas de quase anti-benfiquismo ao longo dos anos de amigos vermelhos mais eufóricos (parecia a época do Mccarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos da América em que toda gente se acusava mutuamente de ser comunista, pondo em causa o seu amor à América – como se ser comunista ou de esquerda fosse igual a ser anti-América).Às vezes lembro-me do que Jaime Antunes aturava nas Assembleias-Gerais, quando ele apontava exactamente o caminho certo para o Benfica e revejo-me nele – acho que por aqui se perdeu muita massa crítica e de análise perspicaz no Benfica e nos deixamos levar para o populismo...Tudo isto gerava um estado bipolar nos adeptos (ou éramos, em delírio, os maiores do mundo ou escondíamo-nos com vergonha de nos assumirmos como benfiquistas, dizíamos que mal fiz eu para escolher ser do Benfica, que doença, que mal fiz eu a Deus!Mas eis que chegaram (não sou católico, mas não resisto a dizer "Obrigado Deus!") Rui Costa e Quique Flores.E as mudanças, pelo menos para mim, vêem-se em detalhes que dizem tudo, levantam um pouco o véu, no fundo, não são apenas meros detalhes, são pistas do que está a mudar no nosso Benfica.Sente-se união, companheirismo, cumplicidade, solidariedade entre os jogadores. Começam a notar-se os frutos das mudanças:- nas instalações do centro de estágio (criaram salas de convívio para os atletas, cantinas, sendo que os jogadores estão mais tempo juntos em coisas extra-treinos, jogos ou estágios, almoçam todos os dias no centro de estágio, o que também é bom no aspecto da nutrição);- no aproveitamento dos meios técnicos de treino disponíveis no centro de estágio (sistema de vídeo é brutal! Camacho não cheirava nada daquilo...).E depois há outros pormenores que me agradam: no Estádio da Luz sempre que se marca um golo ouve-se a música dos UHF, a vénia que o Benfica faz ao público antes do jogo, como sempre fizeram as grandes equipas do Benfica, e outros toques que acredito que seja Rui Costa, ou pelo menos alguém da casa, a dar e que por mim fazem a diferença também.Os valores genuínos do Benfica estão de volta (claro que não sou ingénuo, isto é alta competição, há muito dinheiro envolvido, mas mesmo assim há valores).Assim como a possibilidade de analisar o Benfica ao pormenor e construtivamente, enfim, foi quase um 25 de Abril no Benfica! Para melhor só isso ser acompanhado da saída do Luís Filipe Vieira e termos um benfiquista a sério, com saber e ao mesmo tempo acessível, para presidente, alguém tipo um ex-jogador como sucede por exemplo no Bayern de Munique, um Humberto Coelho...A forma como a postura de Quique está a encaminhar os adeptos e a equipa do Benfica vai fazer a diferença mais tarde ou mais cedo.Quique diz que o Benfica ainda não merece a liderança, fala do que ainda há a progredir, mas afirma que vamos chegar lá. Mais uma vez, de uma forma muito positiva, transforma uma derrota numa peça da engrenagem, uma pedra num longo caminho a percorrer para o sucesso, e desta forma hábil ele dá perspectivas de longo prazo a jogadores, direcção e massa associativa.O treinador espanhol está a conseguir mudar mentalidades no Benfica, a "educar" os adeptos na sua habitual euforia. Quique cria nos benfiquistas uma certa cumplicidade, uma tranquilidade com confiança e não eufórica.Não sei, mas sinto um brilho especial no Benfica como já não sentia desde a década de 80 e início da década de 90...A sensação que temos entre os benfiquistas é que se sussurra que devagarinho lá chegaremos, há confiança que este ano mais tarde ou mais cedo o sucesso e a liderança vão surgir e que quando isso suceder será numa fase madura da equipa, já consolidada... Se o Benfica estiver suficientemente maduro nessa altura, aí temos maré vermelha, embalamos e ganhamos o lugar!Por isso mesmo digo, ainda bem que o Benfica não é líder já, o que poderia suscitar euforias, a velha "educação" dos benfiquistas, e gerar uma pressão acrescida quando a equipa ainda se está a consolidar.Sinto que o Benfica daqui a umas jornadas poderá ser líder. Depois do empate com o Leixões os adeptos não ficaram ultra-deprimidos, continuam tranquilamente a acreditar...Nem ficaram demasiadamente eufóricos com as vitórias sobre o Sporting e o Nápoles! Há qualquer coisa no ar...Dean Saunders