A Crónica da Semana | Relvado

A Crónica da Semana

 

Porque é que os árbitros só roubam o meu clube?
por João Lopes

Provavelmente quase ninguém se interroga das razões pelas quais só o seu clube é
«roubado» e os outros clubes são, na mais benévola das hipóteses,
«prejudicados» (para, acrescente-se, «equilibrar as contas» relativamente às
vezes em que «foram levados ao colo»)... Vou aqui aventar as minhas hipóteses
quanto a tão insólito mistério...

HIPÓTESE 1
Porque o futebol, como todas as paixões, provoca graves atrasos
intelectuais e seríssimas distorções cognitivas que usualmente se inscrevem no
âmbito das alucinações. Não é por mal, diga-se, é apenas o embotamento a
falar por nós. Vejam-se, por exemplo, os extraordinários exercícios de
selectividade da memória dos adeptos: lembram-se de todos, mas mesmo todos, os
lances que prejudicaram a sua equipa e arrumam cuidadosamente num cantinho da
memória todos os que a beneficiaram. Quanto mais perdem (ou menos ganham,
conforme as perspectivas), mais seleccionam e mais vociferam. Em desespero fazem
apelos à pátria, ao Governo, à NATO, ao (defunto) Pacto de Varsóvia, a quem
puser termo a esta «pouca vergonha».
Os árbitros roubam, pois! Os adeptos ou os dirigentes, nunca! Que o diga
aquele honesto cidadão cujo nome não recordo que sempre denunciou os árbitros e
o «sistema» e que jaz agora imerecidamente nos imundos calabouços de um
estabelecimento prisional. Por roubar, segundo os juízes (maldita ironia)!
Os delírios conspiratórios são a parte mais deliciosa do afundamento intelectual
dos adeptos e, sobretudo, dos dirigentes. Estes últimos sabem sempre «coisas»
que os adeptos sorvem sequiosamente na vã esperança de que a conjura
internacional seja finalmente desmascarada. Juram denúncias na Judiciária
(para começar, já que nas entrelinhas fica a ameaça de que a ONU irá saber de
tudo) e anunciam dias radiosos em que tudo estará bem quando os pérfidos
árbitros (cuja cabeça já ouvi pedir em directo num programa radiofónico e
não se tratava de uma metáfora!) forem finalmente denunciados.
Continuem a esperar sentados, caros adeptos, porque o certo é que vocês merecem.
Vocês são sempre «enganados» e nunca têm responsabilidade nos dirigentes que
elegem. Continuem a assobiar para o lado. Afinal a culpa é dos árbitros, não
é?

HIPÓTESE 2
O atávico e enraízado hábito de desprezar o trabalho e o esforço complementa na perfeição as distorções cognitivas enunciadas na hipótese
1. Assim, ninguém ganha porque trabalha mais, porque se organiza, porque
se esforça, porque se empenha. Não senhor! Quando muito concede-se que se
esforçam mais a comprar os árbitros, o que significa que os dirigentes do
nosso próprio clube são tão burros ou incompetentes que nem árbitros sabem
comprar!
Na verdade muitos portugueses ignoram liminarmente as virtualidades do trabalho
e detestam e invejam quem faz melhor. Como dizia um suposto dirigente
desportivo, o importante «não é ter bons jogadores, mas sim controlar os
árbitros». Espero que esta luminária (que não sei dizer quem é) continue por
muitos e longos anos a dirigir o seu clube porque enquanto assim for o meu
continuará a ganhar. Ou então eu estarei enganado e o clube dessa luminária
desde então não parou de ganhar tudo o que há para ganhar. Ou então ainda, o
homem nem os árbitros sabe comprar (nesse caso, ver atrás a que categoria
deverá pertencer).
Há pois que desacreditar o trabalho. Se é assim nas outras áreas da vida, por
maioria de razão há-de ser no futebol, onde a sorte pode decidir um ou dois
jogos, mas nunca um campeonato e muito menos dez campeonatos.

HIPÓTESE 3
Se não houver árbitros em quem é que eu vou bater?
Já pensaram nisto? Já pensaram na importantíssima função social dos árbitros?
Eles são o bode expiatório de uma boa parte da nação. Da nação que, após
450 repetições do lance do penalty roubado conclui sem margem para dúvidas
aquilo que o árbitro em fracção de segundos não foi capaz.
E depois há os árbitros «especialistas» que do alto das inúmeras repetições
concluem, um para cada lado, que foi isto e foi aquilo. Estes, sim, vendem-se
por 30 dinheiros, para julgarem e crucificarem em directo ou em diferido os
ex-colegas de profissão.

Caros adeptos, conservem os árbitros em álcool porque eles são o seguro de
vida dos dirigentes. No dia em que os árbitros forem substituídos por
máquinas infalíveis, os dirigentes começarão a ser substituídos à velocidade da
luz por gente menos falível.
Lamento muito mas prefiro o futebol aos árbitros. Eles erram certamente, mas
dado o intenso escrutínio público de que são alvo, roubam em média menos do
que noutras profissões. São demasiado visíveis e isso tem consequências.
Ganha quem trabalha, perde quem merece. Genericamente é assim no futebol.
Continuem porém a acusar os árbitros porque a vossa consciência pelo menos
continuará sossegada.

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Outras crónicas:
- O Direito à
Indignação, por endhoscopy
- Scolari acabou
com os compadrios..., por palmelao
- A Suíça vai estar
no Euro 2004!, por helder postiga

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Comentários [5]

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Uma crónica...

... como acho que nunca vi.

Brilhante e que disse quase tudo sobre o que penso sobre o tema.

Nunca vi comentários teus aqui e penso que devias escrever mais vezes...

Sinceros cumprimentos,
MrTaz

Obrigado

Por nos ter oferecido esta brilhante crónica.Espero muito sinceramente que seja para continuar,porque é de pessoas com este calibre que o relvado.com precisa,seja qual for a sua côr clubistica.Mais uma vez obrigado.

Excelente!

Devias escrever muito mais, era bom para todos!

Bem escrito.

Uma crónica interessante e muito bem escrita, sem dúvida.

Pessoalmente, tenho reparos a fazer a todos os pontos ou seja às três hipóteses apresentadas e uma crítica mais geral à própria crónica.

Começando por esta ùltima, as hipóteses aspiram a ser lei universais. Para tal seria necessário generalizar os conceitos apresentados a todos os adeptos de futebol e isso parece-me incorrecto.

Em relação às hipóteses:

1ª Sou Benfiquista, mas a minha memória permite-me recordar jogos como o Nacional-SLB na época transcta, em que o clube do qual sou adepto foi claramente prejudicado e lances como um golo de Poborsky em completo fora-de-jogo que foi validado.

2ª Desprezar o trabalho é como desprezar a própria vida em si. E concordo plenamente com o actual treinador do Benfica quando diz que, curiosamente, quem tem os melhores jogadores, normalmente é campeão.

3ª Esta hipótese faz lembrar um pouco o livro 1984 de G. Orwells (a quem nunca leu, aconselho, no qual aparece a figura do inimigo público nº 1 como bode expiatório de tudo o que há de errado na sociedade. Os árbitros erram, e em determinadas circustâncias, diferentes vezes e sempre para o mesmo lado. O facto de isto poder ser parcial ou não deixo à imaginação de cada um.

Tudo isto para concluir o quê?

Que regra geral o campeão nacional é na verdade, a equipa que mais trabalhou e logo o título é merecido.
Mas o adepto de futebol, em sentido lato, sabe reconhecer,mesmo que não o admita publicamente, quando é que a sua equipa joga realmente como um campeão ou além disso usufrui de uma certa estrelinha alheia.

Volto a insistir na qualidade da crónica apresentada, até porque, não gosto de escrever acerca de arbitragens, como foi o caso.

Com os meus cumprimentos,

                          JPS

Brilhante

Simplesmente brilhante. Os meus sinceros parabéns.

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