A bolha de Portugal ou a relação entre governantes e governados | Relvado
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Reflexões de fim de ano sobre um País adiado. Há uma forma de fazer política que se esgotou.&nbsp

 

Pertenço a uma geração que, pela memória e através do testemunho dos mais velhos, soube dar valor ao ’25 de Abril’.

 

Quem se fez homem (ou mulher) no tempo da ditadura sabe do que estou a falar. Sobretudo os homens (ou as mulheres) de letras, que viveram torturados na prisão das palavras e do pensamento.

 

As gerações mais novas, que já nasceram no ‘Portugal democrático’, não alcançam porventura os condicionalismos impostos por um regime hermético, apenas preocupado com a sua própria propaganda.

 

Com a crise financeira que veio colocar em causa a coesão da Europa, não são apenas os indignados a rebelar-se. Os indignados já são, na sua maioria, filhos deste camaleónico liberalismo económico. Os indignados estão fartos de retórica e já perceberam muito bem os alçapões que resultam de políticas estéreis e de promessas sem a mais pequena sustentação prática. A clássica forma de fazer política não basta. Está esgotada. Porque não dá resposta às inquietações dos eleitores, dos contribuintes, dos cidadãos.

 

Como eu, haverá muitos decepcionados com aquilo que significa, hoje, o ‘produto do 25 de Abril’. O valor da liberdade é um valor supremo, mas não justifica que, perante ele, nos ajoelhemos perante esta sensação de desesperança. A liberdade conquistada não se pode pagar com a inevitabilidade dos sacrifícios e das injustiças. 

 

A elite política e, com ela, as outras elites não podem achar que vão continuar a colocar um escudo de protecção entre elas e o comum dos cidadãos. Porque o comum dos cidadãos já descobriu o mecanismo que colocou essas elites numa bolha, com o mais profundo desprezo por aqueles que só se tornam realmente importantes -- e ainda assim tratados com uma certa sobranceria -- em tempos de eleições.

 

Os governantes à escala mundial fazem parte dessa bolha e alimentam-na. É o governo dos Governos. Pertencem a outro mundo. Nesse mundo particular, têm recursos para tudo. Acham soluções para tudo. Os governados são tratados como se pertencessem a outro planeta. E essa dicotomia entre os ‘dois mundos’ acha-se cada vez mais acentuada, com as tensões sociais a atingir preocupante dimensão.

 

Não foi este o País com que sonhei quando, em Abril de 1974, tirei um lenço branco do bolso das calças e subi a um dos muros do Colégio Militar para, com ele, e mui ingenuamente, acenar à população de Lisboa, que se agitava nas imediações do Largo da Luz. Tenho essa memória muito viva dentro de mim, habituado a respeitar a disciplina mas intolerante perante a opressão.

 

Era um jovem com os sonhos próprios de qualquer adolescente. Tive a sorte e o privilégio de compreender, sanguineamente, o que era viver num País subdesenvolvido e amordaçado. Pelo que ouvia à minha volta, pela esperança que a certa altura se instalou nas ruas, acreditei que Portugal iria conseguir níveis de desenvolvimento capazes de nos arrancar da periferia, naquilo que ela tem de menor.

 

Destruiu-se a agricultura e, com os fundos comunitários, patrocinaram-se as ‘orgias de betão’. Construíram-se estradas e auto-estradas, pontes e estádios de futebol -- e os construtores civis conheceram o seu período áureo.

 

Percebemos agora que a disponibilização dos fundos comunitários deveria ter vindo acompanhada por uma mão de ferro. As inspecções nunca são simpáticas, mas estugam o passo ao desgoverno. A Europa também vive disto. Das imparidades e dos abusos. Dos juros. Da ganância. Da protecção de uns em desfavor de outros.

 

Na Europa, alguns políticos já começaram a pagar a factura da sua incapacidade e da sórdida (porque enganosa) dialéctica. Em Portugal, há notícias de ‘desvios’, o ‘alka-seltzer’ desfaz-se em água e... a vida continua. O enriquecimento ilícito e a descriminalização da responsabilidade política cumprem os desígnios daqueles que gozam na cara com o nosso proverbial ‘deixa andar’.

 

A despesa pública aumentou exponencialmente, em contra-mão com o sistema produtivo. Um País que não produz não pode olhar para a economia como uma prostituta de cabaré.

A economia é para ser respeitada nos seus princípios basilares. Temos de ter respeito por ela para ela ter respeito por nós.

 

Os políticos e os economistas não conseguiram prever nada. Levaram-nos ao engodo. Todos os mecanismos de regulação falharam. Mas o falhanço -- para quem não regulou -- também deu prémio. Faz lembrar, no futebol, a arbitragem. Aqui, arbitram mal. E são chamados a arbitrar lá fora. O que significa que esta forma de representação nacional é apenas uma parte de todo um sistema à escala internacional. O somatório das partes compõe o todo do fracasso das ideias e dos métodos. Temos muita gente entre nós com pele de diabo a citar as Escrituras quando isso lhe(s) convém...

 

Continua à solta esta forma irresponsável de fazer política. E nunca se passa nada. Governa-se, faz-se oposição, governa-se, faz-se oposição, invariavelmente com a mesma demagogia. Até nos dizem que o melhor é emigrarmos, enquanto se acertam as contas a um preço elevadíssimo.

 

O problema da esmagadora maioria da classe política é não fazer a mínima ideia do que é: não ter acesso à saúde e à educação; não ter dinheiro para ir ao supermercado; não poder pagar aos advogados para ter acesso à Justiça; não ter emprego...

 

Querem que seja optimista? Sou optimista. Mas basta de enganos. E não tenhamos ilusões: vamos pagar a pena, que não é pequena. Honoré de Balzac dizia que, ‘nas grandes crises, o coração parte-se ou endurece’. Essa talvez seja a parte mais difícil: ‘viver para sentir’ e não ‘viver para ter’. Nas crises, o desespero também leva a acelerar o passo. Sem ética nem escrúpulos. Não sei se há tempo para parar e pensar. Por isso, talvez sejam mais aqueles que querem entrar na ‘bolha’ do que aqueles que a querem rebentar, construindo um sistema alternativo.

 

 (Rui Santos escreve de acordo com a grafia do português pré-acordo ortográfico)

 

Rui Santos no Relvado 3 (fundo branco)
Taxonomia: 
Rui Santos

O pior

É que muitos ,no discurso, abominam a "bolha" mas isso é apenas um estratagema para nela se manterem.
http://www.google.pt/imgres?q=boy+in+de+bubble&um=1&hl=pt-PT&sa=N&biw=11...

SA

Mais um bom texto, cheira-me que escreve melhor sobre politica

económica e social, não desdenhando os comportamentos dos humanos, no que ao pontapeio na "chicha" diz respeito..., a sua vocação não será a de um Sociólogo em potência, perdido em labirintos da bola???

Aquela sua cena do acenar com um lenço branco ao povo na revolução de Abril, faz-me lembrar a ida para a escola nesse dia 25 e ter a porta encostada e os doutos-professores de batinha branca a mandarem-nos para casa e nós sem percebermos nada, chego a casa e vejo a minha querida mãe preocupadíssima e eu indago-a que se passa, hoje não temos escola, a minha progenitora responde-me também não sei meu filho, mas não sais de casa!

Nem passaram 5 minutos e a maralha lá da praceta, começa a tocar à campainha e a chamar-me para irmos para o "monte" (zona sem construção onde brincávamos e se via a estrada militar), vermos as chaimites a passar, PUTOS sem consciência de tudo, que os dias e os anos seguintes nos ajudaram a perceber a beleza de tal dia..., no presente parece que algumas gentes, querem voltar ao 24 de Abril...???!!!

P.S. - Por mim e pelos meus espero que NUNCA MAIS!!! Mas nunca se sabe (cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém), é nestas alturas que saem da toca os radicais e os de extremismos então os de direita, é vê-los a perfilar-se para abocanharem o melhor pedaço, MALDITOS!!!

Triste povo o nosso, em que alguns com papas e bolos enganam os tolos, mas acredite eu acredito haverá sempre alguém que RESISTE!!!

Escreve muito bem...

O jornalista Rui Santos escreve como poucos jornalistas em Portugal e percebe de língua portuguesa. Que saudades das suas crónicas, sobre outros assuntos fora do futebol, na revista do jornal Correio da Manhã.
Continuarei atenta aos textos fora das 4 linhas.

O povo a pagar a ´bolha'

É verdade, caro colega de bancada...No dia 25 de Abril faltou o fogo sair das armas. Porque os cravos não foram suficientes para mudar a mentalidade. Depois disso, nos últimos 20 anos estamos a ser governados alternadamente por gente que se aproveitou da democracia para enriquecer e nós -o povo que sustenta o país- a pagar as facturas desses devaneios.

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